Que a Volare é uma escola de italiano não estereotipado você já sabe, né? E sobre os estereótipos mais conhecidos e largamente apresentados em tantos lugares vou passar batido, porque esse post foi motivado por uma leitura despretensiosa que fiz por esses dias de um romance contemporâneo estadunidense (cá entre nós, último lugar de onde imaginei tirar a síntese de uma reflexão que faço há anos). O romance é uma enorme reflexão sobre escrita e nessa passagem um casal de amigos conversa sobre uma história escrita pela mulher com uma leve inspiração no homem e no seu cachorro para a criação de um personagem:
“(...) Mas você sabe como isso funciona. Você tira algumas coisas da vida, acrescenta outras, conta muitas meias-mentiras e meias-verdades. Então Jip se torna um dogue alemão. E você um inglês.”
O homem resmunga.
“Você não poderia pelo menos ter me feito italiano?”
A mulher ri.
“Eis o que aprendi com Christopher Isherwood sobre transformar uma pessoa real em um personagem fictício. É como se apaixonar, ele diz. O personagem fictício é como o ser amado: sempre extraordinário, nunca somente outra pessoa. Então você exclui os detalhes de como essa pessoa é igual a qualquer outro ser humano. Em vez disso, concentra-se no que acha excitante ou intrigante sobre ela, as coisas especiais que fizeram com que quisesse escrever sobre ela em primeiro lugar, e você as exagera. Sei que todo mundo quer ser italiano. Mas, desde que te conheço, você sempre pareceu um britânico para mim.”
A mulher ri novamente.
O amigo, p. 192-193.
Quando leio durante meu tempo livre, procuro me desligar do italiano e de tantas questões que passam e compõem meu trabalho, mas, como parece evidente nesse trecho, a fresta da porta já estava entreaberta, era só abrir por inteiro. Sua amiga escreve um conto tendo a sua pessoa como base, mas muda ligeiramente algumas características sobre você e seu cachorro e sua primeira reflexão sobre isso é "por que você não fez de mim um italiano?” Achei risível de tão inesperado e, aparentemente, a escritora também, afinal a mulher ri duas vezes.
No entanto, o que ela diz sobre aquilo que aprendeu com o tal Christopher Isherwood sobre construção de personagem baseado no real pode se aplicar a uma certa visão de mundo que temos a tendência de ter e perpetuar: a de que muita coisa no outro è excitante ou intrigante e por vezes excluem-se os detalhes de como essa pessoa è igual a qualquer outro ser humano.
Longe de mim dizer que ser italiano é desinteressante, aliás nem sou capaz de falar sobre isso, por não ser e nem poder ser italiana de modo algum. É mais no sentido de como esse estereótipo se define. O que imaginamos, como italianistas, estudantes de italiano como língua auxiliar, curiosos por cultura italiana e tanto mais? Um homem branco com nariz adunco? Um homem sensual como Marcello Mastroianni? Um cantor lírico? Um homem ou uma mulher? Seria Sophia Loren a maior imagem italiana que temos? Laura Pausini talvez?
Tantas questões e talvez tantas respostas.
Fato é que a Itália tem seu charme e dificilmente você vai encontrar alguém que não goste da Itália. Pode não se importar ou não se interessar, mas desgostar completamente é raridade. Mas e sobre ser italiano e desejar sê-lo? Muitos por aqui são mesmo com processos de cidadania e passaportes vermelhinhos e são italianos como os nascidos e crescidos lá, assim como os filhos dos imigrantes, os de pele escura, os de estatura baixa, as mulheres que não necessariamente sabem cozinhar tão bem ou os homens que não se destacam pela grande sensualidade.
Quando estive lá tive a sorte de conviver com pessoas que eram quase opostas ao estereótipo de italiano, com exceção do estereótipo dos gestos, quase todos os que conheci possuíam uma individualidade muito ímpar e sou feliz hoje por conseguir sinalizar isso aos estudantes da Volare. Claro que o estereótipo existe por um motivo, mas ele não é tudo e abrir os olhos para uma Itália contemporânea, diversa, complexa e, digamos, globalizada, é importante por vários motivos.
De tantos possíveis a pontuar aqui, o maior deles é que é só lá que se fala essa língua, é nessa área de pouco mais de 302 mil km² que nós, estudantes de língua italiana, vamos nos comunicar e nem todo mundo vai ser o Marcello Mastroianni ou uma nonna cozinheira. E nós não seremos também, porque muito da nossa individualidade aprendendo essa língua vai e deve se manifestar nos discursos.
Quando estava por lá, com meus amigos que nada pareciam com italianos - já que um era um coatto (espécie de moleque zika da periferia de Roma), o outro um metaleiro ateu e antireligião e o terceiro um barbeiro com cinco dentes e moicano - ouvia sempre ma tu non sembri brasiliana, mas você não parece brasileira. Pensava bem sempre antes de devolver no mesmo tom acusatório que eles também não pareciam italianos. E que bom que não pareciam e que bom que a minha visão de Itália podia não ser antes e pode não ser agora tamanho reducionismo.
Trabalho com ensino decolonial e não estereotipado por aqui não é por acaso, é também graças a esses amigos que tive a possibilidade e a sorte de encontrar do outro lado do oceano. E é parte da Itália deles, da minha, dos livros e das palavras que tento colocar aqui na sala de aula.
Ah e o livro que menciono no início desse texto, que nada tem a ver com o conteúdo do mesmo, se chama O Amigo, escrito por Sigrid Nunez, publicado no Brasil pela editora Instante.
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