“Siamo tutte giuste e tutte sbagliate.”
Somos todas corretas e todas erradas.
Quando tento fingir que não existo, pego um livro e leio pensando muitas vezes no quanto aquilo é meu, aquele momento, aquele silêncio cheio de letra ao lado de letra é meu, é quieto e me diz tanto sobre tanto do que há, ou não há, nesse mundo.
Em março de 2022, li Olivia Denaro, um romance contemporâneo escrito por Viola Ardone durante o lockdown e fiquei pensando em uma conversa que tive com um colega durante esse mesmo período. Eu falava sobre o Decameron, obra clássica do período inicial da literatura italiana escrita por Giovanni Boccaccio que tem como ambientação para as várias histórias contadas é um grupo de jovens isolados da peste em uma casa afastada das outras pessoas. Lembro de ter comentado, ou pensado: “Como serão as histórias que os escritores vão escrever durante esse nosso período de peste?”
Lembrei imediatamente desse pensamento quando chegou até mim a sugestão de leitura de Olivia Denaro pelo clube de leitura da ABPI (Associação Brasileira de Professores de Italiano) e li rápido, tentando descobrir o que havia de isolamento, peste e, claro, ficção nas páginas escritas por Viola Ardone, mas encontrei questões que são nossas desde que o mundo é mundo, havendo ou não peste generalizada pelo planeta.
O nome do romance é o nome da protagonista, Olivia Denaro, e ela mesma conta sua vida como narradora personagem e, no início, alguém que gosta do silêncio dos livros e dos estudos se identifica quase que plenamente com aquela ragazzina de uma cidadezinha na Sicília. Cidadezinha que não existe, ragazzina tampouco, mas que espelha medos, anseios, reflexões e violências com que nós, mulheres, convivemos do primeiro ao último dia de nossas vidas.
Olivia sente um grande mal estar por não ter menstruado cedo como suas amigas, por ter um corpo da maschio, por ter hábitos da maschio, como catar minhocas na terra junto de seu pai, por não ter a visão positiva do casamento que, no geral, as pessoas de seu convívio tinham. Fortunata, irmã mais velha de Olivia, é uma figura que contribui para cada uma das reflexões que a narradora faz durante sua vida inteira, até quando deixa de ser uma ragazzina e passa a ser uma mulher. Pode-se dizer que é uma mulher forte, de opinião, de decisão e tanto mais, mas mulher, substantivo feminino singular, comporta toda e cada uma dessas coisas e tantas outras que quase não cabem em descrição.
Olivia é uma narradora bastante esperta, se coloca com voz de criança quando é criança, muda o tom quando é adolescente e, adulta, reflete seu papel no mundo: o de ser sempre mulher. As primeiras cenas narradas são na escola e uma delas é de importância especial:
“Una volta, mentre facevamo l’analisi grammaticale, ci aveva dettato la frase: ‘La donna è uguale all’uomo e possiede i medesimi diritti.’ Tutte noi bambine ci eravamo incurvate sul quaderno e avevamo iniziato a compitare: la articolo determinativo, femminile, singolare; donna, nome comune di persona, femminile, singolare. A me però non suonava bene questa cosa: femminile singolare.
‘Maestra, l’esercizio è sbagliato.’ [...] La donna singolare non esiste. Se è in casa, sta con i figli, se esce va in chiesa o al mercato o ai funerali, e anche lì si trova assieme alle altre. E se non ci sono femmine che la guardano, ci deve stare un maschio che la accompagna. [...] Io una donna femminile singolare non l’ho vista mai”
“Uma vez, enquanto fazíamos a análise gramatical, nos tinha ditado a frase: ‘A mulher é igual ao homem e possui os mesmos direitos’. Todas nós, meninas, estávamos curvadas sobre o caderno e tínhamos já começado a analisar: a, artigo definido, feminino, singular; mulher, substantivo comum referente à pessoa, feminino, singular. A mim, no entanto, não soava bem essa coisa: feminino singular.
‘Professora, o exercício está errado.’ [...] A mulher no singular não existe. Se está em casa, está com os filhos, se sai e vai à igreja ou ao mercado ou ao cemitério está sempre junto das outras. E se não existem mulheres que a observem, deve haver um homem que a acompanhe. [...] Eu nunca vi uma mulher no feminino singular.’”
A segunda frase do livro é “io ero più felice se nascevo maschio” (seria mais feliz se tivesse nascido homem). Olivia tem um irmão gêmeo e se lamenta constantemente pelo fato de ter sido ela a mulher, por ser a sua vida um impedimento constante de existir no feminino singular e tudo em sua história, sua trajetória, só existe porque ela é mulher e é assim que o mundo a vê e vê cada uma das mulheres que, aos olhos da criança, não podem existir no singular. Há um homem, um irmão, outras mulheres que fazem delas um grupo inteiro e jamais individualidades que, juntas, formam um conceito plural.
Para além da reflexão linguística interessantíssima proposta por um debate como essa descrição de sala de aula nos anos 1950, que certamente estará em alguma aula da Volare sobre gênero e número no nosso curso A1.1, é simbólica a colocação inocente da ragazzina, piccina, como ela mesma se chama durante a infância.
Olivia conta sua história em primeira pessoa e tudo vai muito bem, narradora sensível, leitora sensível, tudo vai bem até que Olivia sofre um sequestro, uma violência irreparável e sua única saída é o casamento assegurado pela Lei da Honra. Olivia segue outros caminhos, sua história de narrativa também, sua família também e a maneira encontrada por todos, ou quase todos, muda o curso das coisas.
Durante a discussão no clube do livro, uma mulher disse algo como “é bonito ver nesse livro o quanto o não de uma mulher puxa os nãos de outras mulheres”. Não quero me casar. Não quero aceitar as violências impostas. Não quero ficar fora da política. Não acredito na lei da honra. Não quero esses doces. Não quero acreditar que sou limitada em ação e em pensamento por ser mulher.
Não fui capaz de comentar durante o encontro, já que passei mais da metade dele anotando novamente minha própria leitura pessoal, mas não é um livro assim tão bonito e agradável. É doloroso. É doído. É violento ser mulher, no livro e na vida. Olivia se reencontra consigo mesma com o passar do tempo e, ainda que existam muitas personagens masculinas, é nas femininas que a história se desenvolve.
Nesse sentido, o femminile singolare talvez não exista mesmo na história e, se existe, não é forte como o femminile plurale. As reflexões sobre isso, além do trecho que mencionei, não estão postas no livro de modo direto, mas podem se apresentar na reflexão das mulheres que leem pensando em quantas vezes tentaram esconder o próprio corpo com medo da violência que parece sempre iminente, perto de casa, durante o dia, na luz do sol e nos olhos do mundo inteiro.
Esse romance não saiu em português ainda, não diz nada sobre o período pandêmico em que foi escrito, já que é praticamente um romance histórico, mas diz muito sobre violência doméstica, tema esse que, claro, esteve bastante em alta durante essa última peste. Mas há algo além de violência e há mulheres além de Olivia. As personagens femininas são muitas, muito complexas, muito variadas, muito diversificadas e, se formam um plural feminino durante as longas páginas do livro, é porque são sempre individualidades largamente descritas. É possível ver a Itália do sul como ambientação da história, mas qualquer mulher pode se identificar em alguma medida com a narração e o pensamento de Olivia se ver na narrativa, na pele de alguma das mulheres que existem na literatura só por existirem de algum modo no pensamento de toda e cada uma de nós.
“ - Gradite un poco di latte di mandorla con la menta, dottoressa? - domanda mia madre affacciandosi alla porta.
- Grazie, Amalia, con piacere. - Maddalena si alza e torniamo in cucina. - Non sono dottoressa, però, - precisa.
- Vi ho visto con i libri, - si giustifica lei.
- All’università non ci sono andata, ho preso il diploma magistrale e insegno ai bambini, - chiarisce Maddalena.
- Pensavo che facevate la politica, - commenta mia madre.
- La politica la facciamo tutti, in un modo o nell’altro, - ribatte, - ogni cosa è politica: le nostre scelte, quello che siamo o non siamo disposti a fare per noi e per gli altri…”
“ - Gostaria de um pouco de leite de amêndoa com menta, doutora? - pergunta minha mãe ao se aproximar da porta.
- Obrigada, Amalia, adoraria. - Maddalena se levanta e voltamos à cozinha - Mas eu não sou doutora. - Acrescenta.
- Vi a senhorita com livros - Ela se justifica.
- Nunca fui à universidade, peguei o diploma do magistério e ensino crianças. - Esclarece Maddalena.
- Pensei que a senhorita fizesse política. - Comenta minha mãe.
- A política fazemos todos, de uma maneira ou de outra. - Rebate - Cada uma das coisas é política; as nossas escolhas, aquilo que estamos ou não estamos dispostos a fazer por nós e pelos outros…”
Comentários