Antes de começar, quase todo aluno pergunta isso e nunca perguntei o motivo da pergunta, talvez um anseio, um desejo de ouvir só a língua-alvo, um medo de não compreender, nunca precisei saber o motivo também pra responder e ultimamente tenho estudado a teoria pedagógica por trás de muitas das minhas respostas.
Estou fazendo um curso de aperfeiçoamento docente com uma professora que admiro muito, a Marina Grilli do @educaçãolinguística, que trata sobre translinguismo, decolonialidade e emancipação linguística, mas sei que no fim das contas a maior parte dos alunos que busca aprender italiano no Brasil não se preocupa com questões didáticas ou com essas discussões, que eu particularmente adoro. Afinal, ‘quem tem que entender de tudo isso é o professor’, né? Será mesmo?
Em uma aula que dei há algum tempo, uma aluna, ainda na quarta ou quinta aula do curso comigo, perguntou sobre o uso de dicionário na tarefa de casa.
“Devo usar? Não devo usar? Eu prefiro não usar, mas sem contexto eu meio que não entendo.”
Essa não foi a primeira vez que me chegou uma pergunta como essa e minha resposta foi a mesma que sempre tive, inclusive como aluna quando tentava estudar:
“Claro que pode, e deve, caso contrário você meio que não entende mesmo. Você vai se guiar sempre pelo que você conhece, quer eu permita ou não.”
Durante o curso, a professora Marina disse uma frase que me pareceu muito curiosa e me levou até a essa experiência ainda recente na minha sala de aula. Ela disse que “o fato da gente falar uma língua de cada vez não é natural da humanidade, isso é inventado, assim como quase tudo é inventado.” Eu acho divertido na maior parte das vezes pensar que tudo é inventado e em questões de língua e ensino de língua muita coisa foi inventada há muito, mas muito tempo, isso é menos divertido do que aprender sobre invenções como as do Da Vinci, e a gente nem percebe por quem, quando e como tudo foi inventado para funcionar, ou não, da maneira como vemos por aí.
Minha aula não é totalmente em italiano nos níveis mais básicos, porque eu acho que não dá pra ser. Posso falar somente em italiano com o aluno, mas sei que ele vai entender pouco ou pouquíssimo do que eu falo, talvez se desmotive, talvez deixe de estudar uma língua que, afinal, é quase sempre aprendida por opção. Ainda que eu, como professora, defendesse uma aula só na língua alvo, no italiano, eu seria incapaz de impedir que o aluno pensasse na sua própria língua: o português do Brasil.
Acredito muito que as aulas devem ser pensadas, e por aqui são pensadas, em três pontos centrais, um seguido do outro:
Reprimir a nossa língua, o português do Brasil, serve para o primeiro objetivo, o de se comunicar em situações pré construídas, em diálogos de livros didáticos que imitam situações a princípio corriqueiras, mas que se mostram muitas vezes insuficientes, quando não irreais. Prefiro permitir a expressão livre do aluno, ainda que muitas vezes o aluno seja ‘obrigado’ a pensar em português. Sempre dou um sorrisinho quando lembro desse diálogo que tive com um aluno há alguns anos, aluno que já está no final do intermediário por aqui:
- Eu não gosto desse texto, professora. Eu tive que procurar muita coisa pelo contexto e eu não consigo pensar em italiano.
- Poxa, que pena. Mas você entendeu o contexto?
- Sim! Sei que o texto fala sobre…
(falou cerca de 3 minutos sobre o assunto do texto em modo detalhado em português)
- Há quanto tempo você estuda italiano mesmo?
- Faz um mês, né? Mas não sei, acho muito ruim não conseguir pensar em italiano.
- Mas olha o quanto você entendeu desse texto, o quanto você é capaz de falar sobre ele na sua língua mesmo tendo lido ele só em italiano? Com esse tempo que você tem? Esse não é um pouco do seu objetivo?
O aluno mudou de assunto durante a aula, mas se segue com a gente há dois anos deve ter se convencido de que é esse um pouco do objetivo sim. Eu, e a Volare, acredito que aprender língua é sobre se comunicar sim, claro que sim, afinal é pra isso que servem os cursos de grande parte das línguas ensinadas e aprendidas, mas acredito muito mais na importância de uma língua estrangeira, auxiliar, de herança, de prestígio ou do que mais puderem ser chamadas, em uma outra perspectiva. Perspectiva essa que visa um aluno que se expressa e, em seguida, de um aluno que se coloca. Um aluno que sabe se descrever, se compreender através da língua que aprende e se colocar diante de questões políticas e sociais que sempre passam pela língua.
Claro que há um processo de aprendizagem pelo qual todo aluno passa, com habilidades e competências de escrita, fala e compreensão, mas essas habilidades e competências não chegam até o aluno no final do percurso como a fita que está no fim da corrida chega na cintura do corredor. O aluno tem seu percurso e mais importante que a chegada é a construção e o aproveitamento dele com a sua língua nova e sua prática social por meio dela.
Acredito que aprender língua é assim, mas um pouco de tudo que é bom na vida é assim também: mais importante que a chegada é o percurso. Afinal, quando a gente viaja, o bonito mesmo não é a nova vista e os novos ares?
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