Em comemoração ao feriado Festa della Liberazione, dia em que as tropas Nazifascistas saíram da Itália, resolvi revisitar uma leitura que fiz há alguns anos, revisitei para a produção do nosso curso de literatura contemporânea nas férias de verão e essa semana fiz isso mais uma vez só para manter viva a memória do que me parece estar sempre presente.
Se questo è un uomo (É isto um homem) foi escrito por Primo Levi entre 1945 e 1947, autor que é, sem dúvida, um dos mais importantes e impactantes da literatura do século XX na Itália e esse livro é talvez um dos mais impactantes que li sobre a segunda grande guerra, o fascismo e o testemunho desse período histórico na literatura.
Levi era italiano, judeu e químico de formação, mas foi na escrita, e na literatura, que encontrou sua própria maneira de comunicar ao mundo parte do que viveu depois de ser enviado a Aushwitz pelo governo italiano. Segundo o próprio Levi:
"Mi rendo conto e chiedo venia dei difetti strutturali del libro. Se non di fatto, come intenzione e come concezione esso è nato già fin dai giorni di Lager. Il bisogno di raccontare agli ‘altri’, di fare gli ‘altri’ partecipi, aveva assunto fra noi, prima della liberazione e dopo, il carattere di un impulso immediato e violento, tanto da rivaleggiare con gli altri bisogni elementari: il libro è stato scritto per soddisfare a questo bisogno; in primo luogo quindi a scopo di liberazione interiore. "
"Sou consciente dos defeitos estruturais do livro e peço desculpas por eles. Se não de fato, pelo menos como intenção e concepção o livro já nasceu nos dias do Campo. A necessidade de contar “aos outros”, de tornar “os outros” participantes, alcançou entre nós, antes e depois da libertação, caráter de impulso imediato e violento, até o ponto de competir com outras necessidades elementares. O livro foi escrito para satisfazer essa necessidade em primeiro lugar, portanto, com a finalidade de liberação interior."
Nesse prefácio, Levi diz claramente que sua escrita é uma maneira de libertar a si mesmo através da memória presente nas palavras, nas violências descritas e mostra também a importância que têm a resistência e a memória diante do fascismo e quais são as consequências deixadas pela xenofobia desses regimes de extrema direita durante esse período, que não está distante do nosso com relação a tempo e a comportamento político.
Essa leitura foi importante desde a primeira vez, apesar de dura, já que nada descrito é ficcional, o que Levi faz é memorialismo e um memorialismo extremamente importante ao fazer compreender de maneira muito clara o papel que teve o governo italiano nos campos de concentração. Como ele mesmo diz também no prefácio, não é necessariamente um escrito de acusação aos fascistas, mas uma obra documental e de testemunho, para que seja lembrado do ponto de vista pessoal e, por meio dele, do ponto de vista histórico algumas das marcas que deixam o regime totalitário e violento com ideias ainda tão vivas em discursos como os discursos recentes de Matteo Salvini, na Itália, Donald Trump, nos Estados Unidos e Jair Bolsonaro, no Brasil.
A literatura dialoga de diversas maneiras com diferentes esferas políticas e sociais e esse livro me foi muito necessário no processo de compreensão desses temas na cultura italiana, porque tudo se dá no discurso construído pela memória de Levi, que ele começa a escrever ainda no Lager, mesmo que precise se livrar dos manuscritos depois, já que poderia ser simplesmente assassinado, caso um nazista encontrasse palavras que denunciavam tanto o que acontecia atrás dos portões de Auschwitz. A concepção do livro já nasce ali e a maneira com que ele se constrói é também muito simbólica, por ser simplesmente um desejo documental e histórico da experiência violenta e desmedida do nazifascismo.
Mas o livro é mais que isso e a leitura proporciona mais que isso, e pessoalmente comento minha experiência de leitura a partir de um capítulo específico chamado Una buona giornata (Um dia bom). Lembro de abrir meu ebook e observar o nome dos capítulos antes de iniciar a leitura e pensar ‘caramba, ele consegue documentar um dia bom? No Lager? Era muita vontade de viver mesmo.’ Não era não, na verdade.
“Hoje, e aqui, o nosso objetivo é aguentarmos até a primavera. No momento, não pensamos em outra coisa. Depois desse objetivo não há, por enquanto, outro. De manhã, quando, formados na Praça da Chamada, esperamos longamente pela hora de irmos ao trabalho, e cada sopro de vento penetra por baixo da roupa e corre em arrepios por nossos corpos indefesos, e tudo ao redor é de cor cinza, e nós também somos cinzentos; de manhã, quando ainda está escuro, todos esquadrinhamos o céu ao nascente, à espera dos primeiros sinais da primavera, e cada dia comenta-se o levantar do sol — hoje um pouco antes do que ontem, hoje um pouco mais quente; em dois meses, num mês, o frio abrandará, teremos um inimigo a menos.
Hoje, pela primeira vez, o sol nasceu vivo e nítido por cima do horizonte de lama.
É um sol polonês, frio, branco e longínquo, esquenta apenas a pele, mas, quando se libertou das últimas brumas, um sussurro correu pela nossa pálida multidão, e quando eu também senti sua tepidez através da roupa, compreendi como é que se pode adorar o sol.”
A descrição do dia bom no Lager era o dia em que havia um resquício de esperança vindo da natureza, da mudança das estações, da remota e pequena possibilidade de afastamento ou ausência de um inimigo a mais. Esse capítulo me parece especialmente representativo do que faz Levi em Se questo è un uomo, que è descrever a motivação e a possibilidade de sua própria sobrevivência, um pouco de sorte, como ele mesmo o diz em alguma outra passagem do livro, mas principalmente a esperança pequena que existia nas relações que tinha com as pessoas ali, com os pensamentos que tinha ou se forçava a ter e a necessidade de documentar a todos o que, na verdade, naquele tempo não era possível divulgar abertamente.
Durante nosso curso de literatura contemporânea, na aula sobre literatura antifascista, fui mais aluna que professora, já que a Amanda estudou com maestria o tema da literatura de resistência lá na Universidade Roma Tre e até agora penso no quanto essa parte do curso foi importante na nossa formação constante e na formação dos nossos alunos. Na Volare, o antifascismo se dá na sala de aula, nas aulas de literatura, de cultura e de língua, por meio da memória e da discussão pautada no presente e no passado do mundo sempre à luz da Itália e do que é importante lembrar: que literatura è resistência, plurilinguismo è resistência e, ser antifascista è resistência e um dos nossos pilares por aqui, nessa semana e no ano inteiro.
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